Matilde Trocado é antiga aluna e professora e coordenadora da Academia de Palco dos Salesianos do Estoril. Foi responsável pela direção artística dos eventos centrais da Jornada Mundial da Juventude em Lisboa. Acredita que o ambiente salesiano onde cresceu a levou ao mundo do teatro onde trabalha há 15 anos.
As artes performativas, incentivadas na Escola dos Salesianos do Estoril, e que tanto a entusiasmavam como aluna, foram decisivas para o rumo de vida que acabou por abraçar?
Sem dúvida que sim. Nos Salesianos do Estoril encontrei um lugar e uma comunidade que incentivava e promovia as artes performativas, quer em festas quer em idas a espetáculos como a ópera, bailados e teatro. Lembro também que nos era dada uma enorme autonomia na dinamização de projetos e que acabava por ser sempre possível ir do sonho à prática. Hoje em dia sou encenadora, criadora, professora e trabalho em teatro há mais de 15 anos e sei que em boa medida o devo às pessoas que tive a sorte de encontrar nesses anos.
Já encenou espetáculos musicais de grande sucesso quer na “mata” da Escola dos Salesianos do Estoril quer em Lisboa em salas míticas. Em linhas gerais o que realizou?
Tenho vindo a desenvolver trabalho como autora e encenadora, sobretudo na área do Teatro Musical e, de facto, conto já com bastantes projetos e espetáculos. Da minha autoria e encenação talvez destaque o Fénix – que esteve em tournée nacional o ano passado –, o Calcutá e o Wojtyla – que depois de Lisboa, Porto e Braga, esteve ainda em Madrid. Da minha encenação talvez destaque o Jesus Christ Superstar, no ano passado, o Godspell no Teatro Tivoli e noutras salas do país e o Once in Fado, projeto que estreou em Londres em 2016. A par da criação e encenação de espetáculos tenho vindo sempre a dar aulas e a trabalhar com jovens. Nos últimos dois anos, assumi ainda a direção artística dos eventos centrais da Jornada Mundial da Juventude Lisboa 2023, acompanhada por uma fantástica equipa.
Enquanto membro da Direção Pastoral e Eventos Principais da Jornada Mundial da Juventude como foi trabalhar com o grupo Ensemble, composto por 50 jovens, de 22 nacionalidades distintas? A arte também é, na sua opinião, uma forma de evangelização?
O Ensemble foi a sala de ensaio mais heterogénea e multicultural em que já alguma vez estive. Creio que nos palcos isso se tornou visível, mas no bastidor era-o certamente. Vi um rapaz da Nigéria improvisar melodias com um grupo de cante alentejano, rezei ao som de canções eslovacas, dançaram-se sevilhanas em intervalos, foram cantadas músicas da Disney em várias diferentes traduções, viram-se coisas tão diferentes como o canto lírico e o break dance. E creio que se tornou muito claro que a arte era uma linguagem comum a todos, era a língua que todos compreendiam. Eu acredito que a arte permite transcender barreiras e, além de nos ajudar a compreender a nossa humanidade partilhada, permite-nos comunicar a um nível emocional e intelectual mais profundo. Não sei se teremos alguma linguagem melhor para nos aproximarmos de Deus.
Foi responsável pela direção artística, cenografia e encenação da Via-Sacra na JMJ. Quer falar-nos dessa experiência televisionada em dimensão planetária?
Tenho tido muitos ecos acerca da Via-Sacra e fico muito feliz por saber que muitas pessoas gostaram. No entanto, ainda me é difícil ter uma visão clara sobre a experiência. Foi um processo muito intenso e que talvez exija que o tempo me dê um olhar mais claro sobre ele. O que posso dizer é que foi verdadeiramente um processo colaborativo e uma construção a muitas mãos. O que vimos naquele dia tem mesmo muitos nomes por detrás. Para nós que trabalhámos em todo o processo foi muito emocionante o momento em que, no final da Via-Sacra, o Papa chamou o elenco para junto dele e eles foram abraçá-lo. Marcou o culminar de um processo muito bonito.
Acha que o sucesso do espetáculo da Via-Sacra foi a rampa de lançamento da JMJ que extravasou as fronteiras da religião?
Muitas pessoas já o saberão, mas as fragilidades rezadas em cada estação da Via-Sacra foram identificadas numa consulta aos jovens de todo o mundo. Aquelas são as fragilidades que preocupam os jovens dos quatro cantos do mundo. E essas fragilidades são-nos familiares a todos, crentes e não crentes. Dizem respeito a todos. Partilhamos essa humanidade, e esse conhecimento do que é sofrer. Vivemo-lo e vemo-lo à nossa volta. E por isso, ainda que aquele fosse o relato da paixão e de como Jesus acompanha o nosso sofrimento para o vencer e abrir horizontes, acho que dizia respeito a todos.
O Papa Francisco fez grandes elogios à organização da JMJ Lisboa 2023. O que sentiu, e o que sentiram os voluntários à sua volta, ao ouvir essas palavras?
Foi gratificante para todos, sem dúvida. Ver que o empenho do nosso trabalho, com algum sacrifício pessoal em muitos casos, tinha corrido tão bem e tinha sido tão bem recebido foi motivo de alegria. Ainda assim, creio que muitos de nós que trabalhámos na JMJ temos a noção de que o “milagre” da JMJ de Lisboa não foi só mérito nosso e do nosso esforço, mas graça do Espírito Santo. E por isso somos também agradecidos.
Já passaram seis meses. O impacto que a JMJ teve nas estruturas da Igreja está a chegar aos locais onde é exercida a sua autoridade? Mais sinodal e menos clerical?
Gostaria de dizer que sim, mas tenho a sensação de que esse é um caminho que será mais longo. Espero sinceramente que a Igreja o faça e espero que não baixemos os braços para tentar percorrê-lo.
A revitalização da Igreja nas áreas juvenis está a acontecer? Que lhe parece?
Creio que em Portugal já havia alguns bons sinais da vitalidade e dinamismo de que a juventude é capaz. Falo das missões universitárias, por exemplo, ou dos campos de férias. E esses jovens foram decisivos na construção da JMJ de Lisboa. Tenho esperança que a JMJ possa dar ainda mais ânimo e que cada vez mais jovens possam viver a alegria do encontro com Jesus.
Na sua paróquia, por exemplo, sente-se esse novo espírito?
Na minha paróquia há jovens muito inspiradores e que nos fazem acreditar na sua geração. Os anos de pandemia foram terríveis para quem é mais novo, por várias razões. E espero que a JMJ tenha sido o inverso.
Acha que este é momento de viragem para atrair outros jovens que pensam e vivem de maneira diferente?
Acho que é sempre momento de ir ao encontro do outro. E isso é particularmente desafiante num tempo de trincheiras e extremismos. Mas creio que a Igreja nunca deve “desligar-se” do mundo e da cultura em que vive.
Que iniciativas sugere para não deixar morrer as sementes lançadas pela JMJ?
Não tenho soluções, mas tenho bastante esperança. No que diz respeito ao que eu acompanhei mais de perto, tenho esperança nos frutos que esta rede de jovens artistas de todo o mundo possa ainda vir a dar, para a vida de cada um deles e no que poderão vir a construir onde quer que estejam. Que a partilha de experiências e referências – artísticas e não só – possa inspirar a criatividade e abrir horizontes.
Tenho esperança que a JMJ possa ser uma rampa de lançamento para que a aproximação à arte possa ser destemida. Esperança de que animados pelas palavras do Santo Padre, o diálogo com o mundo artístico seja mais uma porta escancarada na Igreja. Acredito que há caminho no encontro com os artistas e com a cultura contemporânea.
Se tivesse que escolher um momento que, pessoalmente, mais a marcou durante a JMJ, qual seria?
Os minutos de silêncio que vivemos no Campo da Graça durante a Vigília. Um milhão e meio de pessoas juntas em oração e um silêncio com uma força que não sei explicar. Não esqueço esse momento. Estava numa das torres de iluminação acima da régie e tinha uma vista privilegiada da multidão e do rio. E senti que estávamos juntos, todos. Que quem acredita nunca está só.
Publicado no Boletim Salesiano n.º 602 de março/abril de 2024